sábado, 4 de dezembro de 2010

Discurso 15 anos d'Orfeu - por Odete Ferreira

foto © Mário Abreu

Quinze anos já cá cantam.
Disse Luís Fernandes, Coordenador Geral da d’Orfeu.
Hoje, temos a certeza que os quinze anos da d’Orfeu cantam também no Brasil, onde se encontra este nosso timoneiro e garimpeiro, com apoio da Organização dos Estados Iberoamericanos para a Cultura, em trabalho cultural intenso, em prospecção de talentos que a d’Orfeu há-de divulgar.
Depois de ter participado na Aula Grátis Semanal da d’Orfeu e à pergunta “Gostaste da tua experiência na d’Orfeu”, Manon Martins Clemente, de sorriso à flor da pele, um dente adulto ainda por nascer, respondeu assim: “Gostei muito da maneira descontraída de ensinar dos professores, sobretudo porque falávamos de muitas coisas, muitos instrumentos novos, sons e músicas diferentes daquilo que aprendo na escola.

A menina desenhou assim a alma da d’Orfeu com tintas de infância, aguarelas de sons, de música, da diferença. Pressentiu-nos. Desenhou-nos. Obrigada, Manon!

Quinze anos é pouco tempo. São anos de Ingenuidade. Encantamento. Entrega. Risco. Luta. Paixão. Renovação. Nunca, nunca ociosidade.
Nesta década e meia, andarilhámos por aí, em todo o ar que nos levasse, num corrupio de leva e traz. Trouxemos nomes de quase todo o mundo. Levámos Águeda a sítios nunca sonhados pelos nossos fundadores. Formámos, criámos, divulgámos, inovámos, associámo-nos, fizemos parcerias, fidelizámos públicos, recriámos tradições, contextualizámo-las na contemporaneidade, numa filosofia de primado da arte sobre o entretenimento descartável, visando a aquisição de hábitos culturais, recusando o consumo imediato e a estatística ocasional.
Somos adolescentes? Pois que sejamos! A adolescência é a única idade de uma associação cultural.
António Pires, o escritor do “Contexto”, escreveu a história da alma da d’Orfeu, dos seus afectos, relatou o quase inenarrável e só um artista da palavra poderia tê-lo feito. Tiago Pereira, o visualista de "Significado", apontou a modernidade, assente nas raízes, como a essência da d’Orfeu.
Eu também não estou aqui para inventariar e catalogar factos da vida da d’Orfeu, mas há referências incontornáveis, na história desta Associação Cultural.
As nove edições do Festival “O Gesto Orelhudo” têm vindo a mostrar muito do que, transdisciplinarmente, se faz, no mundo, no âmbito das artes de palco.
As catorze edições do “Outonalidades” – circuito português de música ao vivo, têm revelado grupos musicais e promovido a sua circulação, extravasando as fronteiras nacionais, incrementando as trocas culturais entre Portugal e a Galiza, levando a d’Orfeu a, juntamente com várias associações musicais de Espanha, França, Bélgica e Dinamarca, tornar-se membro fundador, da Live DMA, uma plataforma de redes nacionais dedicadas à circulação de música ao vivo de pequeno formato no espaço europeu.
Os festivais de música do Mundo, inicialmente locais, deram lugar a um festival inter-municipal e regional, o Festim, fomentando sinergias e destruindo muros, continuando a revelar outras vertentes da cultura mundial, tão desconhecida pelos meios de divulgação puramente comercial. É conhecendo a música do outro, a sua diferença, que reconhecemos a essência da nossa.
As duas edições do festival i estiveram aí, para maravilhar o público familiar.
Os seminários temáticos anuais da d’Orfeu, com as últimas edições dedicadas ao Associativismo, têm sido o reflexo de uma preocupação constante de actualização, divulgação e troca de experiências, filosofias, caminhos, com vista a um enriquecimento colectivo.
As nossas criações, pontuais ou permanentes, a convite de outros ou por motivação própria, têm sido pontos de referência, e têm proporcionado um intercâmbio de vivências que enriquecem o nosso património de afectos.
Os nossos ciclos experimentais foram descobrindo o talento e trabalho de grupos apontados hoje como referências culturais e desembocaram em realizações, com uma acentuada vertente formativa, no domínio das tecnologias das artes do espectáculo.
A nossa Formação tem produzido e divulgado valores:
. nas artes de espectáculo,
. nas novas tecnologias ligadas às artes de palco, à imagem, informação e divulgação, numa busca constante do novo. Hoje mesmo, aqui e agora, estamos a projectar imagens do nosso site na Web, com estrutura a partir do logótipo da d’Orfeu, adaptação aos novos formatos de visionamento como iphone, ipad e outros suportes informáticos com dimensões reduzidas, e acesso directo a todas as ligações da associação, como facebook, myspaces e blogues.
As nossas co-produções locais, marca indelével da d’Orfeu, de que destacamos os espectáculos inter-associativos “Rio Povo” em 2007, 2008 e “Povo que lavas no rio Águeda” em 2009 e 2010, com a cumplicidade de múltiplas associações e inúmeros artistas locais e nacionais, e as Sextas Culturais de 2008, 2009 e 2010, ciclos agora encerrados para a d’Orfeu, constituem sinergias relevantes para a história cultural da cidade.
A nossa actividade, a nível local, regional, nacional e internacional, está devidamente documentada, na memória física ou informática e na memória humana de todos os que têm rido, questionado, aprendido e convivido com a d’Orfeu. A d’Orfeu tem sido e há-de continuar a ser uma sala de estar para quem quiser festejar a vida.
"Por vezes à noite há um rosto que nos olha do fundo de um espelho.
E a arte deve ser como esse espelho
Que nos mostra o nosso próprio rosto" [ Jorge Luís Borges ]

Ainda ontem, ainda há pouco, que o tempo da memória não se mede por relógios, um menino arquitecto, António Rocha Carneiro, ensinava no quintal, como se dizia” Povo que lavas no rio”, com o rio a ditar por dentro. Ele, o mais infante de todos os d’orfeus.
E um outro, o da palavra circunflexa, com direito a cognomes: Antunes de Almeida, Paixão, Direito e Poesia. Ele a quem os olhos se fizeram chuva, quando a d’Orfeu fez palco em Falgoselhe.
E Arlete Soares da Conceição Fonseca, rica de identidade e de afectos, que guardava a d’Orfeu, letra a letra, para que nenhuma pedra lhe tocasse.
E Rui Aguiar, Senhor da Serra, Ouvidor da Água, Bailador da memória. Apanhador do sexto sentido da terra. Mandador do Cancioneiro.
E Lélia Santiago, a Menina Castanheira, a Adolescente Concertina, a Senhora Directora, a mãe de tanto talento.
E Cristina Moura Coelho, irmã gémea da d’Orfeu a embarcar na mesma Catrineta da aventura, a travestir o tempo de audácia e de loucura.
E José Luís Gonçalves, de Espinhel, a dobrar as palavras com a música, a fazer da vida um constante carreiral de amigos. A Banda Alvarense testemunha.
A d’Orfeu aqui evoca.
Serão sempre amigos d’Orfeu. São também a nossa História. Pertencem à nossa marca. A d’Orfeu não esquece. Só se a neve da serra e o gelo do rio nos congelarem o canto. Ou a palavra. Ou a memória.

E outras histórias se viveram nos nossos milhares de horas.
A mais escondida vive entre uma fachada e um quintal. Ali, na Venda Nova, rua da Murmuração. Não é somente a história de artistas. É a história de gente formigueira, teclas a ditarem letras, números, gráficos, documentos, requerimentos, previsões, planificações, autorizações, concursos, criações, logística, viagens, aeroportos, imagens, cartazes, sonoplastia, luminotecnia, raiders técnicos, Web, circuitos, festivais, seminários. É a história de gente que partilha a arte, mas não vende a alma, de gente que é igual a toda a gente, de gente que procura amigos em vez de senhores, de gente que serve a cultura, que a divulga, que a traz e a leva, à raia, à praia, ao norte, centro e sul, a outros palcos da Europa e a quantos continentes houver.
As pessoas trabalham aqui com muito amor mas também com muito sacrifício, há aqui uma carga desumana de trabalho desde o início. Queremos garantir que as coisas continuem a existir, mas temos a noção clara de que tem que se dosear.
A d’Orfeu é uma nau de gente. Os da Venda Nova são os remadores. São eles que, numa militância muitas vezes inexplicável, constroem, com a sua dedicação, esta paradoxal associação, tão pequena e tão grande, tão reconhecida e tão esquecida, tão rica e tão despojada.
Em 1995, ninguém poderia imaginar um tal percurso. Mas se rebuscarmos as sementes iniciais, detectamos utopias hoje acontecidas. Quinze anos são pouco tempo para tanta lança em África.
Mas há mais histórias na sombra. Das que precisam de rufar, para nos arrombar a indiferença.
Escutem. Orquestra de percussão, com nome de enfeitiçar. Zabumbar. Alunos da Cerciag. Não conhecem? Nos carnavais e outras festas que tais, eles desfilam na avenida. É um tal de ribombar. No quintal da d’Orfeu, também já tiveram estreia. No solstício de Junho. Chegaram. Medo a sair-lhes dos olhos. Nervos a tolher os braços. Até que…
Tum! Um sinal da maestrina e toda a banda se arruma. Tum, tum, e a banda se perfila, e baquetas em ventoinha te, te, te, te, te,te,te, te, te, e agora um baile de baquetas e tambores sem parar tum, te, te, te, te, te, te, tum, tum, tum e agora só tambores a trovejar tumtumtumtumtumtumtumtumtumtumtum, e a mestra sempre a mandar e, depois de uma grande sinfonia de percussão e magia que toda a gente endoidece, agora é para acabar, tum, te, te, te, te, te,te, tum, tum, e novamente baquetas a valsear te,te,te,te, te,te,te,te,te, e Tum, tum, é a banda a perfilar-se e Tum, toa a banda a arrumar-se, à ordem da maestrina, pouco mais que uma menina.
E um clamor de palmas e uma revoada de bravos a trazer o céu aos olhos dos tamborileiros.
E depois destas histórias que ninguém conta em lugar nobre, e que hoje tiveram o seu momento de glória, permitam-me que tenha umas palavras para o futuro da d’Orfeu. Não sou astróloga, nem leio as linhas da mão. Mas sei que o futuro se alicerça no presente. E este é um tempo cheio de sonhos realizados, de reconhecimento institucional, de prémios, de dedicação, de trabalho. Também de algumas pedras no sapato.
Nenhum poeta autêntico (e a expressão é pleonástica), pode aceitar, como regra de jogo, agradar; pelo contrário – disse Eugénio de Andrade.
Mas temos, inegavelmente, um presente cheio de projectos, de ansiedade, com uma equipa dinâmica, criativa e assertiva.
O actual sucesso do projecto d’Orfeu não se consegue por milagre ou mero acaso. É este presente, com provas dadas, que nos faz ter esperança no futuro. A d’Orfeu é uma associação cultural, com espírito empreendedor, com um culto de exigência que nos obriga constantemente a ultrapassar-nos.
Não vivemos num lugar fechado, intocado pelos ventos de um momento crítico. A nossa capacidade de resistir tem sido testada muitas vezes e temos conseguido ultrapassar obstáculos, nunca esmorecendo, nunca olhando o chão. E esta energia, todos sabemos, vem do colectivo. Sem o esforço e o empenhamento da equipa, de sócios, amigos, parceiros, mecenas, entidades institucionais, comunicação social, a d’Orfeu não teria alcançado tão grande reconhecimento. Todos nos temos empenhado e, juntos, temos conseguido respeito e prestígio para a nossa Associação, no país, em Espanha, ali, um pouco mais além, onde também já moramos, onde o nosso nome já se diz em francês, em italiano, em alemão, em servio, polaco, checo, numa torre de babel que temos vindo a escalar.
Em quinze anos, a d’Orfeu já conquistou um espaço único e tem uma história riquíssima. Mas ainda há muito mais para crescer. Perspectiva-se o futuro da associação com «mais solidez e mais qualidade e, obrigatoriamente, melhores condições. E há a necessidade de renovação: renovação de meios, de orgânicas, de conceitos, até de pessoas. Estamos empenhados na criação de condições estruturais e humanas de funcionamento para que continuemos a evoluir. A d'Orfeu conseguiu e conquistou um estatuto que já não pode ser desbaratado». Dizem, magistralmente, Luís Fernandes, esse músico, programador, arquitecto visionário da estrutura d’Orfeu, e António Pires, sonhador incorrigível, esse poeta da diferença, no livro Contexto.
Quinze anos é muito tempo.
Alguém profetizou, utopicamente, que chegaríamos à última fronteira. Mas nós é que vamos empurrando as nossas fronteiras. Os nossos limites vão sendo desenhados por cada um de nós, paulatina ou vertiginosamente, num misto de arrojo, de loucura e de inocência. Como a do menino do poeta brasileiro Manoel de Barros.

O Vidente
Primeiro o menino viu uma estrela pousada nas pétalas da noite
E foi contar para a turma
A turma falou que o menino zoroava
Logo o menino contou que viu o dia parado em cima de uma lata
Igual que um pássaro pousado sobre uma pedra.
Ele disse: dava a impressão que a lata amparava o dia.
A turma caçoou.
Mas o menino começou a apertar parafuso no vento.
A turma falou: mas como você pode apertar parafuso no vento
Se o vento nem tem organismo.
Mas o menino afirmou que o vento tinha organismo
E continuou a apertar parafuso no vento.

Odete Ferreira
Presidente da Direcção da d'Orfeu

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