terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Navegar é preciso, viver não é preciso!

MEMORANDO DO PÉRIPLO DE PROSPECÇÃO CULTURAL NO BRASIL
Luís Fernandes / d’Orfeu Associação Cultural
22 Novembro a 13 Dezembro 2010
apoio: Organização dos Estados Iberoamericanos

minha mesa de trabalho na d’Orfeu, como a deixei à partida


ESCALA 1 _ CURITIBA (PARANÁ)

Na capital do Paraná, esta primeira semana do périplo reflectiu-se numa ronda de reuniões e conversas com instituições, artistas, produtores, para além de assistir também a um ou outro espectáculo. Com a Olaria e a sua dinamizadora Lia Marchi - parceira d’Orfeu de longa data - como pivot das oportunidades de contactos, os encontros sucederam-se:
  • com Janete Andrade (programadora), da Fundação Cultural de Curitiba, na própria fundação que dirige, onde me abriu as portas da Capela Santa Maria, espaço outrora de oração agora transfigurado em auditório. Pessoa de referência para as pontes que queremos fazer.
  • com Sérgio Albach (director da Orquestra à Base de Sopro) e João Egashira (director da Orquestra à Base de Corda), do Conservatório de MPB, o primeiro num fim de ensaio, o segundo num fim de concerto. Os fins das coisas são sempre mais descontraídos.
  • com Hermeto Pascoal e Aline Morena (músicos), visita de cortesia em que senti como a d’Orfeu, para os que lá passam, não se esgota num concerto ou tournée. Depois de me ter dado a receita de como se faz o Som da Aura, estou em pulgas para as suas boas-vontades criativas com uma gravação que lhe deixei.
  • com Clodoaldo Costa (produtor), da Banalíssima Arte (indicado pelo pessoal do Tangos & Tragédias aquando da recente passagem pelo Festival O Gesto Orelhudo, há menos de dois meses atrás), que poderá ser providencial para futuras oportunidades de circulação no Brasil. Boa conversa ao sabor de um açaí.
  • com Robert Amorim ‘Beto Batata’ (empresário e promotor cultural). Beto Batata é um restaurante muito popular, tal como o proprietário, um melómano das artes, que faz do restaurante um autêntico centro cultural, promovendo continuamente artistas, projectos, exposições e edições. A casa tem um único prato na ementa: batata suíça, um preparado de batata que é cozinhado em frigideiras, ficando com forma tipo ‘omelete’, tendo várias opções de recheio. Empanturra qualquer um, eu não consegui acabar a minha. Já a opção de programa cultural é bem mais abrangente: além de exposições de arte permanentes e lojinha com as múltiplas edições (livros, discos, DVD, postais) de artistas patrocinados pelo Beto Batata, ao fim-de-semana chega a haver música ao vivo em quatro salas distintas do restaurante/complexo em simultâneo. Um espantoso lugar.
Desta primeira escala, Curitiba, senti possibilidades concretas de cooperação futura, mas temos agora que conseguir juntar duas pontas. Do lado brasileiro, entusiasmarem-se com uma participação artística lusa na 30ª edição da Oficina de Música de Curitiba, em Janeiro 2012. Do lado português, não se deixar passar em claro, junto das instituições, o anunciado facto de 2012 ser o Ano de Portugal no Brasil. Fiquei refém desta missão.

Em Curitiba, vi ainda a estreia do novo espectáculo da Companhia dos Palhaços, malta muito prendada para a musicomédia. E conheci, via DVD por gentileza do seu maestro, Milton Karam, o Coral Brasileirinho.

Saí também de Curitiba em direcção do mar, para uma jornada que se revelou especial na Ilha dos Valadares (ao largo da cidade portuária de Paranaguá), onde mergulhei na profunda vivência do Fandango daquela região litoral do Paraná. Essa volta levou-me, entre muitos, ao
tocador de rabeca Pedro Pereira, à Associação Mandicuera e à inauguração da exposição de instrumentos musicais do fandango (rabeca e viola caiçara).

Pedro Pereira, tocador de rabeca, no seu boteco na Ilha dos Valadares

a Associação Mandicuera mantém vivas as tradições da ilha – grande trabalho, ‘Poro’!

eu a t(r)ocar viola caiçara com os fandangueiros em Paranaguá


ESCALA 2 _ SALVADOR (BAHIA)

Salvador tem um centro histórico de uma carregadíssima influência portuguesa, nas praças e edifícios, mas especialmente nas igrejas (há 365 igrejas na capital da Bahia, uma para cada dia do ano). Além disso, em Salvador, um aguedense está quase na terrinha: também há Praia da Barra e, melhor, Farol da Barra!

O Mercado Cultural da Bahia tem palco principal no Teatro Castro Alves, cujo principal auditório de 1437 lugares acolheu os maiores concertos (nomes como o enorme Egberto Gismonti marcaram o programa, ainda que o cartaz tivesse escala planetária, com grupos de Espanha – o Coetus, com o nosso conhecido Eliseo Parra -, Coreia do Sul, Marrocos, Cabo Verde – a emergente Carmen Souza – e Áustria).

o Teatro Castro Alves à pinha, no Mercado Cultural da Bahia

Apercebi-me da realização prévia de uma caravana artística do Mercado por pequenas cidades do interior da Bahia, com as comitivas dos grupos estrangeiros que viriam a fazer parte do programa oficial em Salvador. Com pena, só percebi a verdadeira dimensão dessa fascinante parte do programa, já em Salvador, pelos relatos chegados.

Das três componentes habituais das feiras de música, o Mercado Cultural da Bahia foca pouco ou quase nada a componente de exposição. Antes privilegia os concertos e as mesas-redondas. Os contactos entre profissionais ficam ao sabor do encontro informal durante e entre as actividades e os concertos. No Mercado da Bahia vi repetir-se a sensação de como, neste meio, recorrentemente encontramos as mesmas pessoas, os mesmos profissionais (algumas mesmas caras que na Womex, no Babel, no Mercat Vic e por aí fora). Só não contava que, noutra latitude, fosse tão marcante esse padrão. Afinal, estamos a falar de gente que percebe que não pode não estar em todas. Rendo-me às evidências do ‘negócio’ música. Só não acrescento nenhuma convicção às que já tinha.

Foi em Salvador, numa mesa-redonda (por sinal, rectangular), que tirei o raio-x à geografia de Feiras e Mercados em território brasileiro, a saber:
A 4 Dezembro, em Salvador, estive também em Águeda via telefone, nos 15 anos da d’Orfeu. Tive que compensar a ausência no porco-no-espeto com ementas locais: acarajé, moqueca de camarão, queijo coalho assado na brasa, etc e tal.


ESCALA 3 _ BELO HORIZONTE (MINAS GERAIS)

BH é uma cidade mais actual, digamos assim, soa mais a europeia. Na arquitectura não tão antiga, nas ruas, prédios e avenidas, na vivência urbana. Foi a primeira impressão, que fui podendo depois comprovar.

A Feira Música Brasil é um super-evento de encher o olho, com uma máquina institucional e promocional que, me parece, dispôs de meios invejáveis. Explicável talvez por ser uma iniciativa do próprio Ministério da Cultura brasileiro, operacionalizada pela Funarte, com direito a Ministro na cerimónia de abertura. E a ex-Ministro no palco principal: na primeira noite, entre muitos outros, um fabuloso concerto de Gilberto Gil.

Mas, de tudo o que me passou pelos olhos e ouvidos, muitos novos nomes me entraram na memória futura (pelo potencial de os programar um dia qualquer ou por, simplesmente, terem caído no meu goto melómano). E lanço já aqui o directório desses nomes todos, juntando Curitiba, Salvador e BH, dos programas oficiais ou dos outros. São eles, a minha selecção brasileira destas três semanas:
  • Julião Boêmio
  • DJ Tudo e sua Gente de Todo Lugar
  • Titane
  • Breculê
  • Renata Rosa
  • Uakti
  • Quarteto Olinda
  • António de Pádua
  • Renegado
  • Leandro Valentin
  • Pato-Fu
Uns ouvi, outros conheci, outros ouvi falar, outros esbarrei com eles, outros impingiram-me (eu também me fartei de impingir, não seja por isso!). Mesmo que fosse para conhecer pela internet, há coisas a que só cheguei estando no Brasil, quem diria? Por estar perto dos zunzuns locais, por ver um cartaz na rua, por apanhar um comentário, por se sentir no ar.


A FMB, que a cada ano tem lugar numa capital de Estado diferente (em 2009 foi no Recife, agora em BH), só apresenta grupos e artistas brasileiros, portanto é uma montra deliberada para programador estrangeiro ver. E estavam muitos, representando os principais festivais da Europa e Américas – vários, bastantes até, a fazer a dupla escala Salvador / Belo Horizonte, como eu. E, além dos concertos e conferências, uma tónica muito forte nos encontros de negócios. Um salão repleto de mesas com pré-inscrições e agenda marcada, lembrando um qualquer campeonato de xadrez mas com corropio de bolsa de valores, para agentes ou artistas terem os seus cinco minutos de tempo de antena junto dos principais programadores.


Senti na FMB a impotência pela ausência lusa de políticas de exportação cultural, de organismos de promoção exterior, de linhas de apoio à circulação internacional. Chega a ser inglório, isoladamente, competir por um espaço de interlocução e colocação do nosso produto artístico no Brasil ou onde quer que seja, entre tubarões, leia-se países (ou regiões), que suportam
à cabeça a mobilidade dos artistas, chegando em alguns casos a pagar para garantir o maior contingente artístico possível neste tipo de certames. Só para contexto, com uma estratégia representativa, os nosso vizinhos galegos apresentaram-se em BH com uma comitiva de cerca de quinze pessoas, liderada pela AGADIC, com uma agenda quase diplomática de reuniões e, como já é hábito, munidos do habitual merchandising promocional de música galega com que nos presenteiam na maioria das feiras internacionais. Se para o Luís Fernandes, programador da d’Orfeu, a colheita é certa – tem-se acesso a exponencialmente mais oferta que a nossa própria procura -, já como artista ‘vendedor’ e português, ali na Feira Música Brasil fui só um reles navegador de nau catrineta. Este assunto é tema a expurgar, com a brevidade possível, junto dos responsáveis ministeriais ‘lá da terrinha’, como chamam, não sei se carinhosamente, os brasucas ao país colonizador.

Mas a oportunidade que a OEI - Organização dos Estados Iberoamericanos nos concedeu é extraordinária. O potencial de partilha deste périplo brasileiro, para o trabalho em rede que a d’Orfeu procura desenvolver, é enorme. Três semanas de prospecção abriram não mais que brechas, mas que agora, com trabalho de sapa durante o resto do ano, se podem transformar em portas a ranger, sim, mas a abrir. É difícil, pois o Brasil não tem a mesma predisposição cultural para Portugal como nós temos para tudo o que vem do Brasil, mas a semente foi lançada. Acreditemos na profecia cantada por Chico Buarque sobre a lusitanidade das terras de Vera Cruz:

Esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal

Por fim, uma palavra para o mais estupendo património que aqui deixámos: uma língua comum. Parei na rua para pensar nisso e o efeito dessa tomada de consciência é esmagador. Ainda que no Brasil de hoje, em que as novas gerações já não têm contacto geracional com pais, tios ou avós de ascendência lusa, o nosso português de Portugal chegue quase a ser, por vezes, uma língua estrangeira... Oi? Quê?!

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