quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

18 anos d'Orfeu

Corria mil nove nove cinco.

Esta "Ficha do Doente" foi o primeiro, histórico e irónico documento oficial, à laia de comunicado de intenções, da associação cultural que escolheu invocar o nome do Deus da Música em vão de escada, juntando-lhe um d minúsculo a querer simbolizar uma nota de música - coisa que ainda hoje não estará clara para muitos - e um também minúsculo apóstrofe, singeleza que tanto irrita os que não o conseguem localizar no teclado para emitir a factura. Não raro, sai 'd-acento' e não 'd-apóstrofe'. Para não falar do ph, que nem neutro é.

Foi, efectivamente, por força das melhorias do paciente (lembro: o momento cultural da Águeda de então, que começava a não cuidar de ousar e inovar) que as dosagens não mais deixaram de ser reforçadas. E, na voragem do tempo, 18 anos voaram nas auto-estradas culturais rasgadas por esta d’Orfeu que hoje celebramos.

A d'Orfeu fez-se. A d’Orfeu d'Orfez-se. Muitas vezes, dor foi.

Com dentes e sem nozes, santos da casa a fazer milagres, água dura em pedra dura.

A d'Orfeu foi Todos os Dias, sempre a Eventar, Serviço Público de Cultura, Um Pequeno Mundo, Música por Todos os Lados, um microclima cultural, casa de trabalhadores da cultura, bombeiros culturais. A d'Orfeu marca! d'Orquê?

Diz-se por aí, à boca cheia, que sabemos a cultura.
Talvez se diga por aí, à boca pequena, que a sabemos toda.

Com aquilo que fizemos nos últimos 216 meses – vêem como se transforma 18 anos em pouco? -, acabámos por levar à banalização do estupendo, à vulgarização do impressionante.

Para quem ainda se perguntasse pela d'Orfeu, é desse tão bom mal que sofremos. Habituados à voz-corrente de que fazemos umas coisas. Imunes ao estigma de que somos artistas. Vacinados contra o protagonismo rebentativo da volta e meia. Acostumados a que se espere sempre demais de nós, mesmo além do que é humano. Culpa nossa. Não há desculpas!

A d'Orfeu fez-se. A d’Orfeu d'Orfez-se. Muitas vezes, dor foi.

O fascínio maior desta história foi a concretização do que, na altura, não podiam ser mais que utopias. Eis-nos aqui chegados. Já começamos a fazer acreditar que a d'Orfeu não é um epi-fenómeno. Fez 18, sobreviveu à puberdade artística.

Sonho e razão. Razão e sonho. Já tivemos razão antes do tempo. Também já só tivemos razão depois do tempo. Já sonhámos cedo demais. Também já sonhámos tarde demais. Razão e sonho.

Nesta resenha falo-vos de forma risonha daquilo que é o nosso razonho. Pode parecer um termo ranhoso, mas razonho é razão e sonho. O nosso razonho. Um razonho de dezoito anos.

Neste rascunho falo-vos daquilo que foi riscado, daquilo que era rasquido. Deste recanto também vos falo daquilo que foi requinte, do tanto que está recente.

Ver se não fico enrascado no efeito enriquecido deste arrazoado. Antes enroscado no afecto enrouquecido do que não é racionado. Ver se não discurso debalde, ver se dispenso disfarce. Ver se me dedico, ver se vos deleito.

Ver se faço a apologia sem acharem que é mania. Ver se faço o destinado sem me sentir em fobia. Ver se vêem neste rosto os sinais de um rasto. Ou melhor, ver se vêem nesse rasto os senis que lhe dão rosto.

Um like, um donativo, um sorriso, um aluno, uma medalha, um pão, um pin.

Sob o sabre da crítica, venha o que vos sobra na prática. Talvez tenhamos uma ética exótica e uma ínfima fama daquilo que fomos (isto segundo os sinais de fumos).

Um post, um cheque, um olá, uma adesão, um troféu, um pote, um piu.

Sabem que sobre métrica, não tenho a escola política. Talvez fujamos da forma óptima e da insana soma daquilo que somos.

Somos d’Orfeu. Somos todos d’Orfeu. Somos as foladas do Honório e da Valentina. Somos os quilómetros da d'Orfina, da d'Orfaina e da Ford'ina. Somos os indiscutíveis gostos estéticos do Tesi, um dos maiores consumidores de cultura da região.

Insistimos no nefasto que é pensar a cultura como entretenimento. Se para quem a consome pode ser, para quem a faz não pode ser! É um compromisso tão difícil. E está-nos colocado cada vez mais difícil. Queremos continuar dignos de quem acredita assim.

Ainda assim, mais futuro que passado, haja pernas para voar, com os pés assentes no som.

Nada disto é pela medalha de mérito, é pelo mérito da medalha.

Viva a d’Orfeu!


(intervenção de Luís Fernandes, coordenador-geral da d'Orfeu, na cerimónia dos 18 anos da associação e entrega da Medalha de Mérito Cultural, a 4 de Dezembro 2013)

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