quinta-feira, 18 de dezembro de 2003

Como uma canção num disco faz o mundo pequeno (sendo o Brasil tão grande)!


Já contei a história a meio mundo. No próprio dia não resisti a enviar por e-mail um relato corrido daqueles momentos de emoção no Recife.

A nossa ida ao Brasil aconteceu porque pensámos, há uns meses, ali ser possível descobrir o conceito de "aRTE sOCIAL", juntando gente das artes de toda a América Latina e de alguma Europa. E pensámos nisso porque em Março passado nos cruzámos com a Anna Maria – brasileira não de gema, pois nasceu dos genes de pai nordestino e de mãe sueca! - e, desse contacto, surgiu a iniciativa de dinamizarmos o primeiro evento d’Orfeu à distância. Já corremos algum mundo, é certo, mas nunca tínhamos tomado em mãos a organização de um evento que não acontecesse em Águeda. Foi mesmo a primeira vez e, por sinal, excelente estreia.

A Anna Maria e o pai, Anacleto Julião, – fixem estes nomes para o resto da história – foram, durante meses, as pessoas de contacto no Recife para que, através da organização Mirim Brasil, fosse assegurado o suporte logístico local de toda a acção.

Dizia eu que, naquele 4 de Dezembro, ao terceiro dia da visita, enviei um correio electrónico emociado para os colegas na d’Orfeu (lá nos Brasis estava só eu e o Luís Silva), mensagem que depois fui repetindo para gente que sabia ficaria tocada com a história. No calor da emoção e do tempo que lá faz nesta altura, escrevi assim:

Hoje, pela manhã visitámos pontos vários de interesse, entre os quais o monumento "Tortura Nunca Mais". Ali eles tinham preparado uma pequena cerimónia, para explicar todo o tempo de ditadura no Brasil nos meios de 1900 e das torturas, com flores a serem depositadas pelos participantes estrangeiros da Visita. Após uma intervenção já de si emocionada, o Anacleto anunciava que iam passar uma música de homenagem, ali mesmo e nesse momento, às vítimas da tortura simbolizadas naquele monumento. Eu pensei logo em, de seguida à música que eles iam fazer ouvir, chegar-me à frente e cantar também o "Alípio de Freitas" (mesmo a capella), do Zeca Afonso, tema grato que tenho na cabeça e que retrata a história verídica passada no Brasil ao tempo por esse português, Alípio de Freitas. Mais oportuno que naquela cerimónia? Tão oportuno que, entretanto começa a música que o Anacleto tinha anunciado e era ... o Alípio de Freitas! do nosso CD Os CantAutores! Fiquei pasmo com a antecipação. Puxaram-me para a frente, com a música sempre a tocar e acabei a cantar junto, já na quadra final:

"Diz Alípio à nossa gente
Quero que saibam aí
Que no Brasil já morreram
Na tortura mais de mil

Lá no sertão nordestino
Há p'ra lá tanta pobreza
Com Francisco Julião
Forma as Ligas Camponesas"

Coisa mais bonita, naquele momento! Nunca palavras cantadas tiveram tanto significado como ali. O Anacleto Julião toma de novo a palavra e acrescenta: obrigado ao Luís e à d'Orfeu por esta homenagem, ao gravarem esta música que tanto significado tem para nós. Só por isso tínhamos que vir aqui junto ao monumento (estava eu ainda parvo de eles pegarem na música para fazer aquilo). Mas o que o Luís não sabe é que aquele personagem a quem Alípio de Freitas se juntou para formar as Ligas Camponeses (foi um movimento oposicionista muito importante no Brasil à época), que o Luís canta no final da última quadra, chamando Francisco Julião, esse... era meu pai. Era o avô de Anna Maria! (Francisco Julião, o grande e heróico brasileiro que, ali mesmo ao lado do monumento, tem uma lápide de homenagem.)
Eu não tive reacção - houve quem contasse e me dissesse depois - uns 2 minutos.
O Silva estava estupefacto.
Os visitantes dos 11 países todos incrédulos.
Ao pessoal do Mirim (Victor, Sylvia, Felipe, Rozinha, Anna Maria, Anacleto e os outros) cairam lágrimas.

Viemos a armar esta parceria (que está [estava, esteve e foi] a ser de categoria máxima) com gente que, já depois da iniciativa a rolar, descobriu aquela quadra no CD e aguardou o momento de fazer esta surpresa hoje. E andávamos a cantar um nome de um fulano que, por obra do destino, é o orgulho de família para pessoas com quem nos cruzámos por tudo menos por isso.

Vá-se lá entender o Brasil ser tão grande, mas o mundo tão pequeno. O momento e a forma como Anacleto fez aquilo, foi de se abrirem os céus. O Anacleto falou-me da estima que a sua mãe tem pelo "Padre Alípio". Quase prometi que havia de o localizar em Portugal - já me têm dito que vive por aí, mas nunca consegui encontrar a ponta do novelo que nos levasse até Alípio de Freitas.

Tinha vontade que todos vocês tivessem presenciado aquele momento. Fica o relato possível daquilo que não tem descrição.

À tarde fomos para as favelas, ver grupos de miúdos fazer coisas lindas orientadas por animadores voluntários, de teatro, dança, capoeira. Eis a aRTE sOCIAL!
Abraço e obrigado.

Luís

Hoje, já de volta ao Inverno cultural destas paragens, continua a
chover ternura de quem ouve a história. Percebi que é por estes momentos belíssimos e irrepetíveis (sic) que valem a pena todas as torturas por que passamos e nos fazemos passar.

PS: Com esta agora é que eu não contava: ao escrever esta crónica, dou por mim que 4 de Dezembro – o dia dessa emoção no Recife – é o dia da fundação da d’Orfeu. Precisamente oito anos antes, nesse mesmo dia, fundavam-se em Águeda os sonhos de partilha que o episódio do Recife veio alimentar. Penitencio-me de não ter dado por mais essa coincidência feliz, mas decorre seguramente do facto de não ser costume organizarmos os jantares de aniversário. Mea culpa…

Um comentário:

Oletram disse...

Que história linda!!!