quarta-feira, 6 de fevereiro de 2002

Rocha Carneiro, um d'Orfeu

Hoje quero tocar o absurdo por tu

Quero pôr de lado a solenidade com a morte.
Afinal de nada nos serve a reverência. Ela não nos faz o favor de nos poupar. Pode acenar-nos com um sorriso amarelo de prolongamento, mas a palavra fim morde-nos venenosamente.
Hoje quero dar-lhe intimidade e rir-me raivosamente por ter de curvar-me diante do irremediável que nos espreita em cada esquina, em cada desaceleração da máquina, em cada estrangulamento de veia, em cada mancha de ferrugem que nos vai limando.
Hoje está tanta coisa de luto. A poesia, a liberdade, a solidariedade, a arte. Rocha Carneiro, o Artista, não está mais na primeira fila de um colóquio, de um espectáculo, não cria mais, não se expõe mais, não sente mais a festa e a dor dos Artistas.
Hoje quero tocar a Arte por tu.
Quantas vezes, meu amigo, te sentaste connosco e nos ouviste, como se fosses o mais pequeno de nós? E quando te levantaste e nos ensinaste o caminho de dizer poesia? A tua voz fazia-se outra vez adolescente, o teu sorriso fazia-se novamente tímido, a pedir desculpa de nos ensinar, a nós alunos da tua inteligência, da tua criatividade, da tua cultura, da tua simplicidade.
Tu que cantaste o samba e a saudade de Domingos Sineiro, nos sinos de Stª Eulália, que sofreste a beleza da tua cidade desgastada no urbanismo desenfreado, que entendeste que o Amor é a mola real da reinvenção do mundo. É por isso que hoje a tua voz se costura com os sinos, o fervilhar da praça, a cor dos teus azulejos, a vida da tua História, o olhar encolhido dos animais que se acoitam no caminho livre da tua casa, as folhas e as flores que se debruçam nos teus muros, a palavra que te disse, a palavra que nunca tive tempo de dizer, este silêncio que nos adestra com o ferrete da pressa.
Hoje quero tocar a solidariedade e a amizade por tu.
Porque nós, todos os d'Orfeu, recebemo-las desmesuradamente e havemos de apregoá-las, porque essa foi a tua herança.
E afinal, meu amigo, o que nos uniu? Foi a harmonia da aragem? A diferença de tempos? O risco do relâmpago? O desatino da procura da Arte? O caos e a desordem depois da perda irreparável?
Tu que tinhas o poder de apaziguar, tu que procuraste a Poesia no Vale das Sombras, legaste-nos a tua inquietude, a tua juventude, o teu desapego, para somar à nossa conta, para que na tua cidade todos tenham o seu lugar ao sol.
Assim quis Orfeu com a sua Eurídice!


Odete Ferreira

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