3 de Agosto, Sendim, planalto mirandês. O vento vai arejando uma noite suada e modorrenta. No meio da povoação, um palco promete festança. A Casa da Cultura, e o restaurante “Gabriela”, o da afamada Posta, já afreguesados de outras folias, aprontam-se para o arraial. Igreja e banco, de portas fechadas, vão consentindo a arruada. Dá-se o caso de estar a chegar ao fim a IV edição do passeio “L Burro i L Gueiteiro” – em língua mirandesa –, organizado pela Galandum Galundaina – Associação Cultural e a AEPGA – Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino.
Aguardam-se os burriqueiros que, ao longo de três dias, palmilharam, ao som da gaita, caminhos e lameiros das terras de Miranda. Homens de Sendim, de chapéu na cabeça e riso já na confiança, vão casquinando estas coisas da rapaziada. Ora o que haviam de se alembrar! De querer que os asnos se multipliquem! Num lembra ó diabo! Ora uma destas! As mulheres de Sendim vão olhando esta genteada amiga, lá da cidade, que por aqui se vai multiplicando, uma vez no ano. Que venham, que venham, a gente sempre regala a vista e dá uso ós burros! Mata-se a sede da espera com a cerveja da esplanada ou de uma barraquita de angariação de fundos. Só quando chegarem os foliões, é que se há-de inaugurar o arraial com os Toques do Caramulo. Entretanto, a criançada vai-nos impingindo canivetes multifunções de Palaçoulo. Outros folgazões vão-se aconchegando nos degraus da igreja, que o festejo há-de ser de racha ó pessegueiro. Um casal turista de Lisboa comenta que ouviu falar do passeio de burro, na rádio. Coisa importante! Quase tão falado como a “bosta mirandesa”, brinca um criativo. Pena que o casal já não chegue a tempo de se inscrever na burricada. Uma mulher, de bigode quase farto e lenço a cobrir-lhe a cabeleira em extinção, cansa-se do ensaio de som. Talvez fosse melhor um bailarico de realejo, a repenicar as modinhas do seu tempo. No palco, informa-se profusamente que “há muitos burros, mas estes estão em extinção”. Que me desculpem os concertistas da noite, mas pus-me a cogitar, se a informação se referia apenas aos jumentos. É que derivado ao estado das coisas da cultura, não sei se não será de se constituir uma Associação para a Defesa do Músico Português, já que os gaiteiros de outras andanças têm estádios garantidos. Temos de sustentar as nossas megalomanias!
E lá vai chegando o cortejo dos passeantes, sem stress, a maioria de calções e tshirt ou camisolas sem mangas, elas de saias rabonas ou calças bem cingidas, mochila a tiracolo, ar ecológico, passo despreocupado de quem passou três dias sem as urgências do mundo urbano. E antes que lhes desse para almofadar as pernas em qualquer assento, o Presidente da Galandum anuncia os Toques do Caramulo, este grupo da d’Orfeu de Águeda, que arejou as cantigas do Caramulo. E foi um tal rodopiar, um tal frenesim de bailarico, um tal “mais, queremos mais” dos bailadores, que teria nascido com eles a madrugada, se não houvesse ainda o concerto do grupo Ginga, de Coimbra.
E se não são estes e outros gaiteiros a passear-nos por planaltos ou lameiros desertos do nosso interior, se não são estes e outros gaiteiros a proteger a música portuguesa, a defendê-la da extinção, a levar o arraial a sítios a fervilhar de gente e a outros a ressuscitar, se não são estes e outros gaiteiros a repor o povo a cantar e a dançar no terreiro ao som da gaita, então havemos de ficar mais e mais desertos, a abanar o capacete ao toque das modas emprestadas dos outros.
Ainda bem que a Galandum Galundaina e a AEPGA e outras associações organizam eventos culturais. Levam gentes à terra, promovem e divulgam a nossa cultura, permitem a interacção com outros, vão extinguindo a solidão, fomentam alegria.
Eles é que sabem!
Odete Ferreira
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