quarta-feira, 9 de fevereiro de 2005

Pela boca morre o peixe



Não seriam o Trigo Limpo se, no passado 4 de Fevereiro, no auditório do Centro Comunitário de Recardães, não nos deixassem assim, com água na boca, dessa que transbordava do mar do palco, onde se balouçava um barco-peixe e onde se desenhavam a intriga e o poder entre três náufragos, em luta pela sobrevivência.

Nesta colagem de textos do Padre António Vieira, Slawomir Mrozek, Brecht e Karl Valentin, com dramaturgia e encenação de Pompeu José e interpretação de Ilda Teixeira, Pompeu José, Ruy Malheiro e Sandra Santos, o espectador vê-se confrontado com a conflitualidade na sociedade humana, representada alegoricamente por peixes, náufragos, tubarões do alto mar e peixinhos de aquário.

Que a experiência e a pesquisa continuam a ser a dominante desta companhia, a elaboração caracteriza a cenografia, a linguagem teatral é profusa, a música liberta ou desperta, consoantemente, e que a interpretação nos agarra nesses tão brevíssimos minutos de espectáculo, serão verdades quase corriqueiras na existência do Trigo Limpo. Nesta noite, como já em tantas outras, os actores vestiram-se de vários séculos e passaram-nos, como em mensagem de cibernauta, o mistério insolúvel da nossa história de humanos, dos homens comedores de homens, para esquadrinharmos, até que a memória se esbata e nos alivie. Deixaram-nos o menino nas mãos. É esse o papel da arte. É assim que fazem os artistas. Abrem-nos tanto os olhos que às vezes nos cegam, como diria Saramago.

E assim vamos “voando por dentro do azul”, de água na boca, com estas viagens promovidas, em boa hora, pela Câmara Municipal e a d'Orfeu.

Que a itinerância prossiga!

Odete Ferreira


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